Narradores de Javé
(Direção: Eliane Caffé, 2003)
Andréa Mangabeira
“E desde então essa é a história de Javé que se conta, mas que também pode ser lida e relida por essa serra e por essas grota sem fim, tá assentada em livro correndo o mundo, pra nunca que ser esquecida, é isso e num tem mais que isso, quem quiser que escreva diferente.” (Fala de Zaqueu, personagem do filme).
A fala em destaque retoma alguns dos pontos mais interessantes no filme Narradores de Javé. O longa nacional, dirigido por Eliane Caffé e lançado no ano de 2003, conta a história do povoado de Javé, no interior da Bahia, que se vê ameaçado pela construção de uma barragem que provocará seu desaparecimento.
O que fazer, diante de tamanha ameaça? Como provar o valor do povoado e impedir que toda a sua história grandiosa seja levada pelas águas? A solução para essas perguntas é que constrói o enredo dessa história narrada por Zaqueu, líder do povoado, e protagonizada por Antônio Biá, habitante alfabetizado, cujo valor pessoal está em dominar a escrita em um lugar onde praticamente todos são analfabetos.
Antônio Biá, funcionário de uma agência de correio, perde seu emprego quando a agência é fechada, afinal “Pra quê um posto de correio num lugar que ninguém sabe ler e escrever?”. Na tentativa de manter a agência em funcionamento, acaba caindo no ostracismo, rechaçado por toda a cidade e condenado a exercitar a escrita apenas nas paredes de sua casa. A situação do personagem levanta a pergunta: afinal de contas, de que vale saber escrever num lugar onde ninguém sabe ler? A continuidade da trama mostra, no entanto, como o domínio da escrita pode se tornar algo muito valioso, reconfigurando as relações de poder e prestígio de uma população ribeirinha e semianalfabeta.
“Uma coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito, o acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido (...) se o sujeito é manco, eu digo que ele não tem uma perna, é das regras da escritura. Essas palavras de Antônio Biá ganham importância quando a cidade começa a enfrentar a difícil tarefa de escrever sua história no “Livro da Salvação”, reunindo em uma só versão escrita as muitas versões orais contadas e recontadas através de gerações. A razão para tamanho esforço é revelada pelo líder Zaqueu: “só não inunda se for patrimônio (...) até hoje ninguém escreveu porque não precisou (...) temo que botar na escrita pra provar pra as autoridade porque que Javé tem que ter tombamento.”
O filme trata de uma maneira séria, ainda que descontraída, questões muito complexas, mostrando como discussões que muitas vezes se restringem ao âmbito técnico e acadêmico podem ser abordadas visando à interlocução com os mais diferentes públicos. No cardápio dos debates que o filme levanta, podem ser destacados: memória, história oral, patrimônio cultural, letramento, analfabetismo, relações de valor entre escrita e oralidade e relações de poder e prestígio mediadas pela escrita. Tudo isso sem falar na questão central e polêmica que é a inundação de cidades para a construção de usinas hidrelétricas.
Narradores de Javé é uma boa pedida para aqueles que querem dar boas risadas e se divertir com o dia-a-dia de um povoado narrado por meio de uma linguagem repleta de ditos populares regionais e de muito bom humor. Além disso, para os profissionais ligados à educação, o filme pode ser um ótimo aliado para levar para a sala de aula o debate acerca de diversas questões relacionadas às áreas da linguagem e das ciências humanas, especialmente as que abordam o uso da linguagem e sua relação com a participação social e as demandas de uma sociedade letrada.
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